quinta-feira, 3 de novembro de 2011

OS POLICIAIS NO CINEMA (4) ANTON TCHEKHOV

:
TERIA TCHEKHOV ESCRITO POLICIAIS?

ACIDENTE DE CAÇA
Pode facilmente depreender-se, lendo a sua biografia, que Emil Loteanu era um realizador de prestígio no interior da URSS. Cumulado de prémios e de honrarias, com uma carreira mais ou menos contínua, agraciado na Moldávia natal, na Roménia de adopção e na URSS que tudo supervisionava e onde trabalhou intensamente e morreu no cargo de director dos Estúdios Mosfilm, ele foi bem o símbolo da cinematografia oficial de um regime controlador que só autorizava e galardoava quem se mantivesse sempre na ortodoxia. Ideológica e estética.
A sua adaptação da obra de Tchekhov “Acidente de Caça” é um exemplo desse tipo de trabalho. O romance de Anton Tchekhov é produto ainda da época de juventude do escritor e não poderá ser considerado uma das suas obras essenciais, mas curiosamente é um bom esboço das suas preocupações e, sobretudo, da forma de as expressar. Tchekhov (1860-1904) não foi nunca um militante político naquilo que escreveu, mas sempre um escritor que reflectiu o seu tempo e as suas contradições, os seus problemas, a dramaticidade da vida na Rússia anterior à Revolução Soviética. Era um miniaturista que raramente escrevia romances e se ficava pelos contos, mas nessas iluminuras criava personagens e situações que realmente “iluminavam” as tensões sociais e os conflitos latentes, sem nunca entrar na demagogia balofa. Era individualista e solitário quando escrevia, generosamente solidário no que escrevia. Analisou como ninguém a vida rural da Rússia czarista, a violência diária dos grandes latifundiários, a ociosidade da aristocracia decadente, os jogos de sociedade de autoridades civis e militares, a dependência servil dos criados e agricultores, e a constrangida vida das mulheres, subjugadas à sua condição e que na época começavam a dar sinais de rebeldia e inconformidade.
“Acidente de Caça” fala precisamente de tudo isso. Escrito no último ano de frequência do curso de medicina, e publicado durante 32 semanas como folhetim de um jornal, entre 1884 e 1885, este romance de Tchekhov não só condensa grande parte das suas preocupações futuras como ainda se revela muito curioso noutros aspectos. De certa forma, é um precursor do romance policial e há mesmo quem afirme que poderá ter estado na base de um dos mais célebres romances de Agatha Christe, precisamente “The Murder of Roger Ackroyd”, que surgiria somente 45 anos depois. Mas o mais curioso é que a primeira tradução inglesa de “Acidente de Caça” é de 1926, apenas alguns anos anterior à publicação de “Roger Ackroyd” que, tal como o romance de Tchekhov, é escrito na primeira pessoa do singular, sendo o seu narrador exactamente o criminoso, como se verificará no final.
“O Drama La Vanatoare” inicia-se por um prólogo durante o qual o relator leva um manuscrito (com o mesmo título do romance de Tchekhov) ao editor de um jornal solicitando-lhe uma leitura e a possibilidade do mesmo ser posteriormente publicado no seu jornal. O editor pede três meses para dar o parecer, e esse lapso de tempo, o que vai do prólogo ao epílogo do romance, funciona como um “flash-back” em que o narrador, um magistrado numa pequena comunidade rural russa, evoca toda a história por si contada no manuscrito.
Tudo se passa durante um verão, nas herdades que estão na posse do Conde Karneyev (um viúvo com dois filhos), Urbenin, o feitor que toma conta das propriedades, e Zinovyev, o já referido magistrado. Entre os três, evolui a bela Olga, filha de um casal de camponeses, cuja beleza e sedução a faz aspirar a mais altos voos. O que acontece. Apaixonada por Zinovyev, que todavia nunca lhe fala em casamento, acaba por desposar Urbenin, que lhe assegura um vida mais cómoda, mas cedo se farta deste e parte para a propriedade do Conde Karneyev, onde parece reunir condições para uma existência ainda mais desafogada. Mas, sempre que pode, vai sendo olhada à distância, ou mesmo mais perto, pelo sedutor Zinovyev, a quem continua a jurar amor eterno. Até que um dia, durante uma caçada, Olga aparece morta, com um tiro de caçadeira. Quem a terá alvejado? Zinovyev, que se encontrara com ela na floresta pouco antes do disparo fatal, ou o marido, Urbenin, que a transposta nos braços para junto do grupo de amigos, gritando por um médico?
Sabe-se no prólogo, que Zinovyev praticara o crime por ciúmes e que o sacrificado Urbenin termina os seus dias na cadeia, pois todos os indícios apontavam para ele, e entre todos era seguramente o que menos recursos tinha para desviar o curso da justiça. O editor do jornal aceita publicar o manuscrito, mas acusa o seu autor de ser igualmente a mão que disparou a arma. O que nos leva para os tais primórdios do romance policial (é conveniente não esquecer que “The Murders in the Rue Morgue”, de Edgar Allan Poe, foi publicado pela primeira vez no “Graham's Magazine”, em Abril de 1841, portanto muito a tempo de ser do conhecimento de Tchekhov).


Deixando de lado a curiosidade policial, a intriga de “Acidente de Caça” reúne algumas das obsessões de Tchekhov: os ambientes das “datchas” russas em pleno período imperial, as reuniões de amigos desocupados e estéreis que, por entre copos de vodka e galanteios, vão passando o tempo numa decadência dourada sem se aperceberem do mudar dos tempos, ou então entrevendo-o e aceitando-o como um irremediável destino a que não podem furtar-se. Neste caso, os três homens que estão na base do romance vivem entre o álcool e a beleza de Olga, enquanto esta, entre a inocente sedução e o arrivismo, procura fazer pela vida com os dotes que a natureza lhe deu. O retrato da sociedade é perfeito, sem maniqueísmos, sem grosseiros sublinhados, antes pelo contrário, com delicadeza e subtileza. Digamos que “à Tchekhov”. Com sensibilidade, argúcia, uma crítica sibilina, que se sente aflorar, mas não se aponta descaradamente aos olhos do leitor, fazendo antes apelo à sua inteligência e perspicácia.
O filme de Emil Loteanu, que escreveu a adaptação da obra ao cinema e a realizou, é um objecto estranho que se procura manter fiel ao espírito de Tchekhov, que suscita algum fascínio indecifrável, mas que, de um modo geral, me afasta do produto final, pelo garrido ostensivo do seu colorido, pelo gosto estético duvidoso (pelo menos no que me diz respeito), pela forma algo amadora como esboça a “mise-en-scène”, para já não falar do estilo (se é que existe um “estilo”, ou será mesmo a falta dele?) que se aproxima muito de um academismo caduco. Mas há, por outro lado, uma sinceridade de olhar, um “encantamento” por parte do director que chega a extrapolar para o espectador. A interpretação é excessiva, a caracterização obsoleta, os actores movem-se como marionetes, os gestos grandiloquentes, as tiradas devidamente sublinhadas, a subtileza de Tchekhov trocada por uma acentuada demagogia. A verdade é que “Acidente de Caça” esteve oficialmente em Cannes 78, seleccionado para a competição oficial, e estreou um pouco por todo o lado (em Portugal também, em 1984). Era o cinema “oficial” da URSS em tempo já de algum “liberalismo”. 

Será interessante referir que, em 1944, nos EUA, o mestre norte-americano do melodrama, Douglas Sirk, realizara uma outra versão cinematográfica de “Acidente de Caça”, a que chamou “Summer Storm” (estreou em Portugal com o título “Tempestade de Verão”), interpretada por George Sanders (Fedor Mikhailovich Petroff), Linda Darnell (Olga Kuzminichna), Edward Everett Horton (Conde 'Piggy' Volsky), Hugo Haas (Anton Urbenin), Anna Lee (Nadena Kalenin), entre outros.
Rodada a preto e branco, num ambiente que se aproximava muito do “filme negro”, esta versão tomava muitas liberdades em relação ao romance de Tchekhov, introduzindo diversas situações e personagens que não provinham do livro, criando uma moralidade final muito americana, e transpondo a acção para depois da Revolução Russa de 1917. Digamos que todos estes aspectos debilitam o resultado final, mas não invalidam a criação de um discreto “filme negro” de fundo melodramático muito interessante de seguir, com uma excelente criação desse fabuloso George Sanders, e uma Linda Darnell diabolicamente sedutora e ambiciosa (muito acima das intenções de Tchekhov) que conduzirá o drama a um final trágico.

ACIDENTE DE CAÇA
Título original: Moy laskovyy i nezhnyy zver ou O Drama La Vanatoare ou The Shooting Party ou A Hunting Accident (titulos ingleses) Realização: Emil Loteanu (1979); Argumento: Emil Loteanu, segundo obra de Anton Tchekhov; Música: Yevgeni Doga; Fotografia (cor): Anatoli Petritsky; Montagem: L. Knyazev; Design de produção: Boris Blank, Vladimir Mukhlin; Maquilhagem: I. Bajkova; Direcção de Produção: Adolf Fradis; Assistentes de realização: N. Martynova; Som: Viktor Babushkin, Vladimir Kurgansky; Companhias de produção: Inter Allianz Film, Mosfilm, Satra, Sovexportfilm; Intérpretes: Galina Belyayeva (Olga), Oleg Yankovskiy (Kamyshev), Kirill Lavrov (Conde Karneyev), Leonid Markov (Urbenin), Svetlana Toma,  Grigore Grigoriu, Vasili Simchich, Olegar Fedoro, A. Zvenigorsky, Anna Petrova, Vladimir Matveyev, Valeri Sokoloverov, B. Kulikov, G. Khasso, G. Ivanova, A. Rozmeritsa, Mariya Zorina, G. Ciubotaru, L. Anashenkova, Belash Vishnevsky, Nikolay Zhemchuzhnyy, Ye. Kiryakova, etc. Duração: 105 minutos; Distribuição em Portugal: Lusomundo Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 13 de Maio de 1983.

TEMPESTADE DE VERÃO

Título original: Summer Storm

Realização: Douglas Sirk (EUA, 1944); Argumento: Douglas Sirk, Michael O'Hara, Rowland Leigh, Robert Thoeren, segundoo romance de Anton Tchekhov ("Drama na okhote”, ou “The Shooting Party"); Produção: Rudolf S. Joseph, Seymour Nebenzal; Música: Karl Hajos; Fotografia (p/b): Archie Stout,Eugen Schüfftan; Montagem: Gregg C. Tallas; Direcção artística: Rudi Feld; Decoração: Emile Kuri; Guarda-roupa: Lon Anthony, Max Pretzfelder; Direcção de Produção: Walter Mayo; Assistente de realização: William McGarry; Som: Richard DeWeese, Fred Lau; Companhias de produção: Angelus Productions, Nero Films; Intérpretes: George Sanders (Fedor Mikhailovich Petroff), Linda Darnell (Olga Kuzminichna Urbenin), George Sanders (Fedor Mikhailovich Petroff), Edward Everett Horton (conde 'Piggy' Volsky), Anna Lee (Nadena Kalenin), Hugo Haas (Anton Urbenin), Laurie Lane (Clara Heller), Sig Ruman, John Philliber, John Abbott, etc. Duração: 106 minutos; Distribuição em Portugal: Sonoro Filmes; Estreia em Portugal (Cinema Éden): 3 de Agosto de 1945.

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