sábado, 21 de janeiro de 2012

OS POLICIAIS NO CINEMA (9) JOHN D. VOELKER E OTTO PREMINGER

ANATOMIA DE UM CRIME
                                                                                    Otto Prerminger e Robert Traver

“Anatomia de um Crime” (Anatomy of a Murder), de Otto Preminger, baseia-se num romance de Robert Traver, pseudónimo de John D. Voelker More que, sendo juiz na época em que escreveu a obra, a assinou com um nome suposto para assim não comprometer a sua carreira profissional, tanto mais que tinha sido ele o advogado de defesa do caso verídico sobre o qual se baseava a suposta ficção. Parece que o grosso volume de “Anatomy of a Murder” andou de mão em mão entre secretárias de diversos editores, até que um se aventurou a publicá-lo, ganhando com isso um “best seller” de reputação incomparável. Este não foi o único policial tendo como cenário um tribunal. John Donaldson Voelker, algumas vezes sob o pseudónimo de Robert Traver, foi um fecundo escritor, entre início da década de 50 e a de 80: "Danny and the Boys" (1951), "Small Town D.A." (contos, 1954), "Anatomy of a Murder" (1958), "Trout Madness" (contos, 1960), "Hornstein's Boy" (1962), "Anatomy of a Fisherman" (uma não ficção, 1964), "Laughing Whitefish" (1965), "The Jealous Mistress" (1967), "Trout Magic" (contos, 1974) e, finalmente, "People Versus Kirk" (1981).
Nascido a 29 de Junho de 1903, em Ishpeming, no Michigan, EUA, viria a falecer de ataque cardíaco, aos 87 anos, no dia 18 de Março de 1991, em Marquette, no Michigan, onde foi juiz no Supremo Tribunal Estatal, entre 1956 e 1960.
Como já dissemos, o texto baseava-se num caso verídico, ocorrido numa pequena cidade, Big Bay, no Michigan. Relata-se em poucas palavras: no dia 31 de Julho de 1952, o tenente Coleman Peterson, recentemente regressado da Coreia, matara a tiro Mike Chenoweth, dono de um bar, alegadamente por este ter violado a sua mulher, Charlotte. O advogado de defesa, John D. Voelker, alegou insanidade temporária do militar, o que acabaria por o libertar, dado ainda um psiquiatra testemunhar que se tinha curado e não apresentava ameaça de perigo. Parece que, depois de bem defendido por Voelker, e livre de apertos jurídicos, o tenente Coleman Peterson deixou a cidade sem sequer pagar os honorários devidos ao seu advogado.
Neste aspecto, o filme de Otto Preminger, que contratou John D. Voelker como consultor técnico, foi o mais fiel possível, não só ao romance como ao ambiente onde decorreu e às personagens que viveram o drama. Todo o filme foi rodado no Estado do Michigan, na zona de Ishpeming-Marquette, o que permitiu ao realizador uma liberdade de movimentos invulgar, sem a presença de controleiros da produtora. O hotel local serviu de base de apoio, onde havia camarins, salas para a fotografia, a montagem, a maquilhagem, etc. O tribunal e a prisão serviram de cenários naturais, o gabinete do advogado de defesa tinha sido o do próprio Voelker e muitos dos jurados do filmes tinham ocupado as mesmas cadeiras no tribunal no desenrolar do julgamento verídico (excepto os que já tinham falecido). Preminger pretendia o máximo de autenticidade e conseguia-o. Tudo isto aparece descrito na obra de Richard Griffith, director do New York Museum of Modern Art Film Library, que escreveu um ensaio chamdo precisamente “Anatomy of a Motion Picture”, onde estuda todos estes aspectos da rodagem desta obra no Michigan.
Mas os direitos de adaptação da obra vieram parar às mãos de Otto Preminger somente depois de um complexo processo. Em Outubro de 1957, Voelker estabeleceu um acordo com o dramaturgo John Van Druten, pelo qual este último se encarregaria de escrever uma versão teatral para ser levada à cena na Broadway. Van Druten encaixaria 60% dos lucros e Voelker 40%, e ambos poderiam vender os direitos para uma versão cinematográfica. O que fizeram a Ray Stark da Seven Arts Productions, acordando numa verba de 100,000 dólares, mais percentagem nos lucros. Van Druten morre em Dezembro desse ano, a peça nunca chega a subir a cena e os direitos de cinema, depois de muitas peripécias, acabam nas mãos de Otto Preminger, em Maio de 1958, um pouco inflacionados, 150,000 dólares. A transacção meteu tribunal e uma sentença favorável a Preminger, que se empenhara totalmente na realização desta obra que se transformaria rapidamente num dos mais invulgares êxitos dos chamados “filmes de tribunal”
Muitos foram os prémios que o filme alcançou (entre eles oito nomeações para os Oscars), mas basta referir uma lista, organizada pelo American Film Institute (AFI), em 2008, depois de consultados 1.500 depoentes da área do cinema, sobre os 10 melhores filmes de todos os tempos, na categoria de “Courtroom Drama” (dramas de tribunal) para se perceber a importância histórica desta obra. A lista é a seguinte: 1. “To Kill a Mockingbird”; 2. “12 Angry Men”, 3. “Kramer vs. Kramer”; 4. “The Verdict”; 5. “A Few Good Men”; 6. “Witness for the Prosecution”; 7. “Anatomy of a Murder”; 8. “In Cold Blood”; 9. “A Cry in the Dark” e 10. “Judgment at Nuremberg”. Pessoalmente, colocá-lo-ia nos três primeiros lugares, e Michael Asimow, professor de Direito da UCLA, afirma mesmo que este é “provavelmente o melhor filme de sempre realizado sobre tribunais” ("probably the finest pure trial movie ever made"). Na classificação da “Internet Movie Database” figura em 19º lugar, entre 807 filmes passados em tribunais.
Contam as crónicas da época que Otto Preminger pensou em vários actores antes de acertar o elenco definitivo. Lana Turner seria inicialmente “Laura Manion”, Richard Widmark esteve previsto para a figura do tenente, mas o mais surpreendente terá sido a escolha do juiz. Inicialmente, fora previsto Spencer Tracy, e depois Burl Ives, para o papel de “Juiz Weaver.” Por impossibilidade de ambos, Preminger virou-se para Joseph N. Welch, um advogado de Boston que tinha representado o governo dos EUA no Exército, no quente período da caça às bruxas levado a cabo pelo senador McCarthy. Joseph N. Welch enfrentou-o destemidamente, chegando a acusá-lo de “não ter um mínimo de decência”, marcando assim o início da queda do temível senador e do macarthismo. A escolha terá sido igualmente uma homenagem a um homem impoluto, que, aliás, conduz de forma magnífica todas as sessões do julgamento. Outra figura carismática que surge no filme, não só como autor de uma envolvente partitura musical, onde o jazz é uma constante, é Duke Ellington, que aparece na qualidade de Pie-Eye, um pianista de bar, tocando lado a lado com James Stewart.
O filme aborda um caso de violação, onde, apesar de toda a discrição com que o tema é sugerido, acabou por criar alguns engulhos junto do “Production Code Administration”, o tão conhecido Código Hays. Depois de várias negociações, durante as quais algumas palavras foram banidas dos diálogos (esperma, penetração, clímax sexual, por exemplo), o filme foi rodado, mas não viu a sua aprovação final facilitada. Coisa que era comum nas obras de Otto Preminger que foi um dos maiores sabotadores do Código (juntamente com Billy Wilder). A “The National Catholic Legion of Decency” levantou problemas e houve mesmo um estado, Chicago, onde o filme foi inicialmente proibido de exibir pelo “Police Film Censor”, e mais tarde autorizado depois de uma querela jurídica, com o juiz federal Julius Miner a aprová-lo, depois de não o ter considerado “obsceno.” Mas todos perceberam que “Anatomia de um Crime” continha linguagem “nunca ouvida num filme americano”.
A intriga resume-se no essencial ao seguinte: numa pequena cidade da chamada “Upper Peninsula” de Michigan, o modesto advogado Paul Biegler (James Stewart), parece quase retirado de julgamentos, entretendo-se com a pesca, o piano e a companhia de um velho colega, Parnell McCarthy (Arthur O'Connell), que gosta imoderadamente de whisky. A secretária de Paul Biegler, Maida Rutledge (Eve Arden), vai tomando conta dos recados, sobretudo divórcios e outras irrelevâncias, quando recebe um telefonema inesperado. Laura Manion (Lee Remick), casada com o tenente Frederick "Manny" Manion (Ben Gazzara), recentemente regressado da Coreia, quer ser recebida. Laura é notícia nacional, todos sabem do caso que protagonizou: ao regressar à roulotte onde vive com Frederick, depois de uma noite passada num bar, é agredida e violada por Barney Quill. O marido, sabedor do ocorrido, agarra numa arma dirige-se ao bar e desfere alguns tiros certeiros em Barney, matando-o. Preso, não nega o assassinato, apenas pretende atenuantes para o acto. Laura quer que Paul Biegler o defenda em tribunal. Com um caso mediático entre mãos, este procura a colaboração de Parnell McCarthy, que tenta libertar-se da bebida para recompor as capacidades, e ambos partem para o processo, reunindo elementos.
A única forma de tentar atenuar a sentença, ou mesmo libertar o réu, é invocar insanidade temporária. Um psiquiatra militar está disposto a testemunhar. Mas pela frente vão ter o promotor de justiça local, D.A. (Brooks West), assistido por uma sumidade vinda da grande cidade, Claude Dancer (George C. Scott). Este é um daqueles chamados “dramas de tribunal”, como já foi referido e, portanto, tudo será dirimido com argumentos de ambas as partes, perante um júri de pessoas locais, escolhidas aleatoriamente, e um juiz particularmente cordato, Weaver (Joseph N. Welch), que procura sobretudo fazer ressaltar a verdade.
Acontece que Laura Manion não é santa de colocar no altar, tudo nela faz ressaltar a sensualidade e mesmo a provocação. E os jogos de bastidores intensificam-se. A defesa tenta tornar Laura uma dona de casa que procura divertir-se sem maldade com a pin box do bar, a acusação ataca-a pelo seu lado leviano. Esgrimem-se testemunhos contraditórios e todo o filme prende o espectador com o suspense desta troca de acusações, de inquirições de testemunhas, de revelações surpresa, de testemunhos inesperados. A estrutura do argumento é sólida e magnificamente conduzida, jogando com a investigação da defesa, esclarecendo factos ou obscurecendo outros, em proveito próprio.
Uma realização clássica, superiormente dirigida pelo austríaco Otto Preminger, faz de “Anatomia de um Crime” uma obra impar dentro do género, sendo que a fotografia de Sam Leavitt, num fulgurante preto e branco, é magnifica, bem como a banda sonora, onde sobressai a música de jazz de Duke Ellington. A descrição da pequena cidade é primorosa de rigor e autenticidade. Mas, num filme de tribunal, é perfeitamente compreensível que o elenco tenha de ser de altíssima qualidade para impor personagens e prender os espectadores. James Stewart é admirável na composição do discreto mas eficiente Paul Biegler, Lee Remick consegue inebriar na figura da provocadora Laura Manion, Ben Gazzara é secreto e misterioso como convém, Arthur O'Connell dá uma lição de bonomia e controlada truculência, George C. Scott é o impassível e incisivo promotor de justiça sem piedade nos interrogatórios e nas armas que utiliza. Os restantes mantém o nível, o resultado é brilhante.
Como se sabe, os mecanismos da justiça norte-americana são muito diferentes dos da Europa ocidental. Nesse aspecto, o filme é a lição para quem quiser perceber essas nuances e descobrir igualmente algumas das regras de ouro por que se rege uma democracia que acredita que pode abeirar-se o mais possível da verdade. É óbvio que a realidade nem sempre é como nos é narrada nos romances e nos filmes, mas é sempre bom ver defender as liberdades e os direitos dos cidadãos, mesmo num caso tão tortuoso como este que nos é apresentado, onde um estado de espírito alterado pela cólera e a sede de vingança pode ser considerado uma atenuante para um crime. Será licito moral e juridicamente? Também nesse aspecto, “Anatomia de um Crime” continua muito actual, ainda que, 50 anos depois, dificilmente o resultado fosse o mesmo.

                                                                                         O extraordinário cartaz e genérico de Saul Bass
ANATOMIA DE UM CRIME
Título original: Anatomy of a Murder
Realização: Otto Preminger (EUA, 1959); Argumento: Wendell Mayes, segundo romance de John D. Voelker; Produção: Otto Preminger; Música: Duke Ellington; Fotografia (p/b): Sam Leavitt; Montagem: Louis R. Loeffler; Design de produção: Boris Leven; Maquilhagem: Del Armstrong, Harry Ray, Myrl Stoltz; Direcção de produção: Henry Weinberger; Assistentes de realização: David Silver, Hal W. Polaire, Ray Taylor Jr.; Departamento de arte: Howard Bristol; Genérico: Saul Bass; Som: Jack Solomon; Efeitos especiais: George Harris; Companhias de produção: Carlyle Productions; Intérpretes: James Stewart (Paul Biegler), Lee Remick (Laura Manion), Ben Gazzara (Lt. Frederick Manion), Arthur O'Connell (Parnell Emmett McCarthy), Eve Arden (Maida Rutledge), Kathryn Grant (Mary Pilant), George C. Scott (Claude Dancer), Duke Ellington, Orson Bean, Russ Brown, Murray Hamilton, Brooks West, Ken Lynch, Howard McNear, Alexander Campbell, Ned Wever, Jimmy Conlin, Lloyd Le Vasseur, James Waters, Joseph N. Welch, etc. Duração: 160 minutos; Distribuição em Portugal: Columbia /Tristar (DVD); Classificação etária: M/12 anos; 

domingo, 15 de janeiro de 2012

OS POLICIAIS NO CINEMA (8) THIERRY JONQUET

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  THIERRY JONQUET E PEDRO ALMODÔVAR:
                    A PELE ONDE VIVEM

Para muita gente, crítico ou não, o último filme de Pedro Almodôvar, “La Piel que Habito”, é uma quase traição ao seu anterior percurso cinematográfico. Que é muito pouco almodovariano, muito frio, muito distanciado do que habitualmente faz, e etc. Na verdade, para ser franco, há alguns dispositivos novos nesta obra, mas não vejo por que razão essa novidade implica com a coerência de Almodôvar, muito pelo contrário. Julgo “A Pele em que Vivo” um dos filmes mais almodovariano dos últimos tempos, aceitando que o cineasta vai amadurecendo nalguns aspectos, criando novas tensões, desenvolvendo no entanto sempre as mesmas obsessões e fantasmas, os seus temas eternos e depurando estilo e narrativa.
O “thriller” não é novidade em Almodôvar. Já o havia tratado abertamente em “Em Carne Viva”, adaptação de um romance de Ruth Rendel, e já o havia abordado por diversas vezes em sequências de muitas outras obras suas, onde o tom de “film noir” está presente. É obvio que Almodôvar é um entusiasta do “policial”, sobretudo do “film noir”, quando este lhe permite analisar o lado mais obscuro da condição humana.
Curiosamente, “La Piel que Habito” parte de um romance de Thierry Jonquet, escritor francês de policiais, muito elogiado em França, pouco conhecido em Portugal, oriundo de uma família de comunistas, filho de um mecânico parisiense, desde muito novo que se comprometeu com as lutas operárias sob o pseudónimo de um caricaturista do século XIX, Daumier. Tornou-se depois membro da “Troskyite Lutte Ouvrière”. Estudou Filosofia, que abandonou, e interesou-se por Ergoterapia (terapia baseada na saúde e no bem estar psico-fisico, conseguidos através do trabalho), depois de ter sofrido um acidente de automóvel. Trabalha em serviços de geriatria, na reeducação de bebés com doenças congénitas, finalmente num hospital psiquiátrico. Estes ambientes marcaram a sua obra. O primeiro romance, publicado em 1984, mas escrito antes, é “Le Bal des Débris”, mas “Mémoire en Cage”, “Mygale” e “La Bête et la Belle” marcam o seu reconhecimento como escritor, obcecado por temas como a violência, as questões sociais, um forte erotismo, tudo escrito numa linguagem realista e poética. Editado em 2006, “Ils sont votre épouvante et vous êtes leur crainte” aborda o antisemitismo. Thierry Jonquet escreveu ainda alguns argumentos para bandas desenhadas, como “Du papier faisons table rase”, com desenhos de Jean-Christophe Chauzy. Assinou ainda algumas obras com pseudónimos, Martin Éden e Ramon Mercader, o primeiro a recordar Jack London, o segundo a evocar o assassino de Trotsky. Morreu cedo (1954–2009), mas deixou vasta obra, cerca de vinte títulos, de que “Mygale”, na sua primitiva edição em francês, ou “Tarantula” ou “Serpent's Tail”, nas suas versões inglesas, datada de 1995, parece ser a sua obra de maior destaque. Foi ela que serviu de base a esta adaptação, muito livre, de Pedro Almodôvar (com a colaboração do seu irmão Agustín Almodôvar).

Se o gosto de Almodôvar pelo policial é conhecido, a sua predilecção por melodramas de faca e alguidar é manifesta, desde a sua mais tenra idade de cineasta. Ele não abdica de uma boa intriga, com famílias disfuncionais, múltiplas peripécias onde paixões funestas e amores à desfilada se entrecruzam em situações limite, bem à maneira do romance de cordel popular. Esta sua nova obra parece atingir um clímax nesse aspecto.
Depois, há o desejo (a sua produtora chama-se mesmo “El Deseo”), o sexo, o proibido, o tabu, a provocação, tudo rodando à volta do corpo e de um aspecto muito preciso da transformação do corpo (travestis e transformistas são habituais frequentadores da sua filmografia). A base sobre que assenta “A Pele em que Vivo” é precisamente o corpo e a sua transformação.
O protagonista desta história, na sua versão cinematográfica, o médico cirurgião Robert Ledgard (um Antonio Banderas comedido e rigoroso, como há muito se não via), assemelhando-se em muito a um Frankenstein dos tempos modernos, procura “criar a mulher” (já Terence Fisher o tentara, numa obra notável, mas recriando a situação com o tradicional Dr. Frankenstein). Mas a obsessão de Robert Ledgard não é pegar em diferentes partes de vários corpos e criar o modelo de mulher ideal. É agarrar num homem e transformá-lo em mulher, através de uma operação ginecológica, mas sobretudo, porque essa é a área das suas pesquisas, através de um nova pele, resistente à dor, ao calor, às picadas, às ameaças do exterior.
O que está na base desta obsessão? Gal, a mulher, teve um acidente de carro e ficou carbonizada, ele tentou salvá-la por todos os meios ao seu alcance, mas acabaria por falhar, pois um dia a mulher olha-se ao espelho e suicida-se, atirando-se de uma janela abaixo. Fica a dor da perca e o remorso do falhanço. E fica a filha, Norma (um referência operática, mais ou menos óbvia), que um dia é violada e fica para sempre traumatizada, acabando por seguir o caminho da mãe. Robert Ledgard sabe quem foi o violador, persegue-o, encurrala-o numa cave e exerce sobre este prisioneiro pessoal todas as experiências possíveis, até ele adquirir os contornos de Vera (a belíssima e talentosa Elena Anaya), que mais tarde se chamará a si própria Vera Cruz. Ela será Vera (de verdadeira) para Ledgard, e Cruz (de calvário) para Vicente (Jan Cornet).
Há uma outra história paralela a esta, que com ela se cruza por diversos meios. A governanta, Marília (Marisa Paredes, como sempre magnífica), e principal cúmplice de Ledgard, é o resguardo seguro do seu palacete e a guardiã das suas experiências, que acompanha através de um ecrã ligado à bela masmorra onde Vera se vai transformando. Mas Marília tem um filho, Zeca (uma personagem de carnaval brasileiro, interpretada por Roberto Álamo), que um dia se esconde sob as saias da mãe, que viola Vera e que Ledgard descobre. O que Ledgard nunca descobrirá é que Zeca é seu irmão, e Marília sua mãe.
Não interessa aprofundar mais a história rocambolesca, e pícara em muitos aspectos. Este enunciado dá bem a medida das obsessões de Almodôvar e da forma como as aborda neste filme. O corpo que se transforma, os sexos que se diluem um no outro, a violência exercida sobre a pele como elemento erótico por excelência e, mais do que isso, a transformação imposta e a culpa que nasce deste acto. E a revolta. Nada de mais almodovariano se poderia encontrar.
Que Pedro Almodôvar é menos barroco do que habitualmente na construção dos cenários e da narrativa, é certo, ainda que a personagem de Zeca e a “boutique” da mãe de Vicente escapem para o ambiente dos seus primeiros filmes. Mas esta deslizagem de Almodôvar para um cinema mais clássico era já notória nos últimos títulos da sua filmografia. A mestria da sua arte continua, porém, inatacável, a direcção de actores é primorosa, e o resultado final é uma obra inquietante, belíssima na sua estética depurada, onde o corpo da mulher (da mulher viva, mas também da mulher “representada” em várias obras de arte que se dispersam pelas paredes da casa de Robert Ledgard) adquire um posição de eixo central que irá comandar toda a respiração deste filme profundamente perturbador.  
Visto o filme, voltemos ao romance que não se pode considerar um policial tradicional, mas que se inscreve mais na tradição do “roman noir”, aqui com laivos de fantástico (a tal referência a Frankenstein não é descabida, ainda que ela se remeta mais ao filme que ao livro). Como é sabido, o “roman noir” e o “film noir” participam de um olhar sobre a realidade social e de uma visão crítica sobre essa realidade. Pode conter ou não a personagem detectivesca, mas o seu cenário natural é o crime que se joga ou no submundo alternativo ou na alta sociedade corrupta e viciada. Este o ambiente de “Tarântula” (editado em Portugal pela Editora Objectiva, na sua colecção “Suma de Letras”).
Curiosamente, no romance o médico cirurgião Richard Lafargue não trabalha obsessivamente com a pele, mas sim com cirurgia plástica, o que implica obviamente o transplante da pele, mas não da forma como aparece na obra de Almodôvar, e que acaba por dar o nome ao filme.
De resto, há inúmeras diferenças entre o romance e o filme, ainda que o esquema central se mantenha. Richard Lafargue perdeu a mulher num acidente aéreo, e descobriu a filha, Viviane, violada por um jovem que perseguiu, raptou, encarcerou e a quem fez uma vaginoplastia, transformando-o numa mulher, Ève, que mantinha prisioneira em sua casa. Esta história, porém, não é contada de uma forma cronológica, mas habilmente entrelaçada, com avanços e recuos, com uma outra, a de Alex Barny, um brutamontes que fizera um assalto a um banco, durante o qual matara um polícia, se refugiara depois com um bem recheado saco de notas numa casa dos arredores de Paris, e resolve chantagear Richard para que este lhe fizesse uma operação plástica para mudar o rosto, e assim se furtar à perseguição policial. No filme, esta personagem surge completamente alterada, sob o nome de Zeca e as vestes de um mascarado “Tigre”. Sabe-se mais tarde que Alex e Vincent (o mesmo que seria transformado em Ève), tinham ambos violado Viviane de forma bárbara, acabando por a encerrar num hospício sem esperança de recuperação possível. Tudo se passa como uma planificada e meticulosa vingança de Richard Lafargue. Ele é a “tarântula” que tece a sua teia em redor da vítima. Como se diz no próprio texto de Thierry Jonquet, “ele era igual à aranha, lenta e misteriosa, cruel e feroz, ávida e insaciável com as suas presas, e porque ele se escondia, tal como ela, algures naquela casa, onde te mantinha sequestrado há meses, numa teia de luxo, numa ratoeira dourada, da qual ele era carcereiro e tu recluso.”
Ambas as obras têm propósitos algo diferentes, ainda que evoluindo por uma trama que os pode aproximar. Mas a adaptação de Almodôvar desliza para outros campos, acentuando obviamente a visão, as obsessões e os fantasmas do cineasta espanhol. O livro é muito bem escrito, com uma perversa sensualidade que por vezes relembra o Buñuel de “Belle de Jour”, deixando adivinhar um excelente escritor de quem, lamentavelmente, se conhece em Portugal apenas esta tradução.  


A PELE ONDE EU VIVO
Título original: La Piel que Habito
Realização: Pedro Almodôvar (Espanha, 2011); Argumento: Pedro Almodóvar, Agustín Almodôvar, segundo romance de Thierry Jonquet ("Tarantula"); Produção: Agustín Almodóvar, Bárbara Peiró Aso, Esther García; Música: Alberto Iglesias; Fotografia (cor): José Luis Alcaine; Montagem: José Salcedo; Casting: Luis San Narciso; Design de produção: Antxón Gómez; Direcção artística: Carlos Bodelón; Guarda-roupa: Paco Delgado; Maquilhagem: Tamar Aviv, Manolo Carretero, David Martí, Montse Ribé; Direcção de produção: Sergio Díaz, Toni Novella; Assistentes de realização: Manuel Calvo, Juan Carlevaris, David Esquivel, Eva Sánchez; Departamento de arte: Pablo Buratti, Vicent Díaz, Alejandra Loiseau; Som: Iván Marín; Efeitos especiais: Reyes Abades, Daniel Reboul, Joaquín Vergara; Efeitos visuais: Helen Marti Donoghue; Companhias de produção: Canal+ España, El Deseo S.A., Instituto de Crédito Oficial (ICO), Televisión Española (TVE); Intérpretes: Antonio Banderas (Robert Ledgard), Elena Anaya (Vera Cruz), Marisa Paredes (Marília), Jan Cornet (Vicente), Roberto Álamo (Zeca), Eduard Fernández (Fulgencio), José Luis Gómez (Presidente do Instituto de Biotecnologia), Blanca Suárez (Norma Ledgard), Susi Sánchez (mãe de Vicente), Bárbara Lennie (Cristina), Fernando Cayo (Médico), Buika (Cantora), Guillermo Carbajo, Agustín Almodôvar, Violaine Estérez, Sheyla Fariña, Esther Garcia, Teresa Manresa, Ana Mena, Chema Ruiz, David Vila, Jordi Vilalta, etc. Duração: 117 minutos; Distribuição em Portugal: Pris Audiovisuais; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 17 de Novembro de 2011.

domingo, 8 de janeiro de 2012

OS POLICIAIS NO CINEMA (7) CAMILLA LACKBERG

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CAMILLA LÄCKBERG, 
A ESCRITORA DE FJÄLLBACKA
Camilla Läckberg é outra escritora revelação que veio do frio, precisamente da Suécia, caminhando na peugada de nomes como os de Stieg Larsson e Henning Mankell. Portanto no campo do policial, mas afirmando-se como escritora plena, que já é tempo de se julgar os escritores de policial tão bons como os melhores, quando realmente o são.  
Desta escritora que nos agarra desde o seu primeiro volume, conhecemos em Portugal, “A Princesa do Gelo” (Isprinsessan, 2002), “Gritos do Passado” (Predikanten, 2004), "Teia de Cinza" (Stenhuggaren, 2005) e, finalmente, “Ave de Mau Agoiro” (Olycksfågeln, 2006). Estes são apenas os títulos traduzidos para Portugal de uma série de mais de uma dúzia de volumes até ao presente, entre policiais e outros, onde ainda se poderão incluir “Tyskungen” (The Hidden Child, na sua tradução inglesa, 2007), “Sjöjungfrun” (The Drowning, 2008), “Fyrvaktaren” (The Lighthouse”), “Snöstorm och mandeldoft” (The Scent of Almonds), “Smaker från Fjällbacka” (Flavours from Fjällbacka, um livro de culinária), todos de 2009, “Änglamakerskan” (The Angel Maker's Wife), “Fest, mat och kärlek” (Feast, Food & Love”, ambos de 2011, “Super Charlie” (2011), e “The Stranger” (2012). Para os entusiastas de Camilla Läckberg ainda há muito para ler, em futuras edições nacionais, que julgo, como as anteriores, asseguradas pela D. Quixote.
Esta escritora e esta série policial que nos é apresentada ostentam características muito específicas que será interessante sublinhar. Mas, ao contrário do que é normal, antes de falarmos da escritora, aproximemo-nos primeiramente das quatro obras já conhecidas e do respectivo ambiente onde decorrem.
Em “A Princesa do Gelo”, primeiro volume da série, vamos encontrar Erica Falk, de regresso à pequena cidade costeira da Suécia onde nasceu. Os pais morreram, a comunidade encontra-se traumatizada por uma inesperada tragédia. A sua amiga de infância, Alex, é encontrada morta na banheira de casa, com os pulsos cortados e o corpo mergulhado em água congelada. Fala-se em suicídio, mas Erika duvida. Convidada para escrever a evocação da amiga, ela que é conhecida por escrever policiais e biografias de mulheres suecas famosas, vê-se de repente no centro dos acontecimentos e de uma investigação particular que irá partilhar com Patrik Hedström, o policial local que investiga oficialmente o caso. Como sempre nestas circunstâncias, a pacata cidadezinha esconde no passado acontecimentos perturbadores. A cidadezinha é Fjällbacka, terra natal de Camilla Läckberg.
No volume seguinte, “Gritos do Passado”, a acção, funcionando como unidade em si só, vai no entanto recuperar personagens e situações do tomo anterior (o que irá acontecer em toda a série). Voltamos, portanto, a Fjällbacka e ao seu porto, onde um rapazinho irá descobrir, numa manhã de Verão muito quente, o cadáver de uma mulher alemã. A polícia inicia a investigação, percebe que se trata de um crime, mas as coisas complicam-se quando, no mesmo local, surgem mais dos esqueletos. Quem conduz o inquérito é o inspector Patrick Hedström, com todo o cuidado possível para não afugentar os turistas durante a época alta. Patrick, é bom que se saiba, juntara entretanto os trapinhos com Erika, e esta encontra-se em casa, grávida, à espera do primeiro filho. Contrariada com a inacção. Por isso decide intervir, pesquisando informações na biblioteca local, o que traz novas revelações, descobrindo-se que os esqueletos são seguramente de Mona e Siv, duas jovens desaparecidas há mais de vinte anos. Uma outra jovem desaparece e tudo parece apontar para mais um crime.  A família Hult, já nossa conhecida de “A Princesa do Gelo”, volta ao palco maior dos acontecimentos, com o seu patriarca, Ephraim, demagogo maior, e os seus dois filhos, Gabriel e Johannes, que se dizem dotados de poderes curativos, a levantarem largas suspeitas. Tanto mais que a família se encontra dividida por rivalidades antigas, que explodem em ódios indisfarçáveis.
"Teia de Cinzas" é o volume seguinte, este passado no Outono. Curiosa a importância que o tempo e a paisagem ocupam na literatura policial nórdica, uma tradição que já vinha das artes plásticas e que se acentuou no seu cinema, quer seja sueco, dinamarquês, norueguês. 
Fjällbacka continua a ser o cenário: um pescador que recolhia ovos de lagosta recupera do mar o corpo sem vida de uma jovem. Pensa-se num fatal acidente. Patrick Hedstrom volta a ser chamado para desencadear a investigação e reconhece de imediato que se trata de Sara, filha de Charlotte, uma amiga da família. Erika, em casa, não consegue atinar com a sua nova condição de mãe de um bebé chorão que não deixa dormir ninguém. Nem com a presença da sogra opinativa. Quando se procede, porém, à autopsia, descobrem-se cinzas na boca da defunta, cinzas essas que começam a surgir na boca de várias outras crianças de Fjällbacka, inclusive em Maja, a filha de Erika e Patrick, que são assim ameaçados na sua própria intimidade. Aparecem vizinhos desavindos, velhos caturras, e revelações cada vez mais suspeitas. Estamos bem. Estamos no interior de mais uma história de suspense de Camilla Läckberg.
O que volta a suceder em “Ave de Mau Agoiro », quarto e último título publicado em Portugal até ao momento. Mais uma vez uma vítima que parece causada por um vulgar acidente de viação, está no desencadear da intriga. Uma vez mais é Patrick Hedström que é enviado para o local do acidente, para tomar conta da ocorrência. Entretanto, os habitantes de Tanumshede, que fica muito perto de Fjällbacka, regozijam-se por a sua cidade ter sido escolhida para cenário de um “reality show” que fez sucesso noutras localidades e que promete levar o nome da cidade a todo o país, durante várias semanas televisivas. Uns poucos acham os concorrentes uns idiotas que só pretendem uns dias de fama, muito álcool e sexo em abundância para oferecer em directo ao voyeurismo dos telespectadores, mas a maioria da população passa-se com o acontecimento. Os media não largam o centro municipal, os jovens apinham-se para ver os silicones de Barbie e os peitorais de Uffe.
Acontece que o corpo da vítima do acidente pertence a Marit, que vive um relação lésbica, e a autopsia afiança que o grau de alcoolemia ultrapassa todos os limites do possível. O que é estranho numa pessoa que não bebia. Mais estranho ainda é a morte de uma das concorrentes, a Barbie que nunca terá sido muito popular entre os colegas, e aqui a investigação de dois crimes começa a assustar a esquadra local, dirigida por Mellberg, um incompetente megalómano.
Ora bem, chegados aqui já conhecemos um pouco o ambiente usual em que decorrem os romances de Läckberg. Uma pequena cidade costeira da Suécia, um casal como personagens centrais, Patrick, polícia, e Erika, escritora de policiais, os pequenos e grandes dramas de uma esquadra de província, as intrigas e os mexericos provincianos, a vida do dia a dia, que um ou vários crimes alteram por momentos. Tudo muito quotidiano, com as investigações policiais a serem entrecortadas por descrições caseiras da vida dos habitantes de Fjällbacka, oscilando entre a esquadra e os lares, entre o insólito que procura resolução, e o normal que tende à continuidade. Lá fora está o calor desmedido ou o frio rigoroso, há o presente e o passado, com uma escrita muito ágil, viva, sem floreados, atenta e atraente. Começa-se a ler um romance e não se pára. 
Ora o curioso é a relação de Camilla Läckberg, a quem chamam “a nova Agatha Christie que vem do frio”, com as suas histórias. Vamos, portanto, falar um pouco da escritora. Nasceu no dia 30 de Agosto de 1974, em Fjällbacka, na Costa Ocidental da Suécia, a cerca de 140 km de Gotemburgo. Cidade histórica, que data do século XVII, é zona pesqueira e turística, com cerca de mil habitantes residentes, e multidões no Verão.
Camila formou-se em Economia, pela Universidade de Gotemburgo, trabalhou como economista em Estocolmo, frequentou um curso de escrita criativa de policiais e mudou de vida. Ela já gostava de policiais desde criança, devorava livros e escrevia desde os cinco anos, e, em 2003, quase a entrar nos trinta, lançou “A Princesa do Gelo”. Três anos depois batia recordes de vendas na Suécia e pouco depois era traduzida em 32 países. Em 2009, foi a sexta escritora mais lida na Europa. Em Julho de 2010, casou-se com Martin Melin, que nos dizem um mediático oficial da polícia, muito conhecido do público da Suécia por ter participado num “reality show”, “Survivor”, em 1997. Ele ajuda-a a escrever os seus livros, oferecendo-lhe os conhecimentos do dia a dia da esquadra, a que ela corresponde com a erudição própria de uma mulher casada, mãe de três filhos. Deste caldo de culturas nascem as obras que deliciam leitores de todo o mundo. Certamente porque há muito de vivido, de autêntico, de genuíno naquilo que ela escreve, muitas vezes seguramente com algo de autobiográfico. Entre a realidade do documento e a imaginação da ficção. Mais um pormenor: tem três filhos: Wille, Meja e Charlie. Meja? Onde é que eu já vi um nome tão parecido?
Ganhou vários prémios literários, entre os quais o “Folket” em 2006, e, no ano seguinte, alguns romances seus começaram a ser adaptados à televisão. “Isprinsessan” e “Predikanten”, em 2007, “Stenhuggaren” em 2009, “Olycksfågeln” em 2010, e “Fjällbackamorden: Havet ger, havet tar”, em conclusão, para emissão durante 2012. Produção sueca, os dois primeiros realizados por Jonas Grimås, o terceiro e o quarto dirigidos por Emiliano Goessens, o próximo terá a assinatura de Marcus Olsson. Elisabeth Carlsson (Erica Falck) e Niklas Hjulström (Patrik Hedström) são os protagonistas dos quarto primeiros telefilmes, e Claudia Galli (Erica) e Richard Ulfsäter (Patrick) anunciam-se para o próximo. 
Mas muito mais se espera deste universo tão sedutor para adaptar ao cinema.