domingo, 15 de janeiro de 2012

OS POLICIAIS NO CINEMA (8) THIERRY JONQUET

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  THIERRY JONQUET E PEDRO ALMODÔVAR:
                    A PELE ONDE VIVEM

Para muita gente, crítico ou não, o último filme de Pedro Almodôvar, “La Piel que Habito”, é uma quase traição ao seu anterior percurso cinematográfico. Que é muito pouco almodovariano, muito frio, muito distanciado do que habitualmente faz, e etc. Na verdade, para ser franco, há alguns dispositivos novos nesta obra, mas não vejo por que razão essa novidade implica com a coerência de Almodôvar, muito pelo contrário. Julgo “A Pele em que Vivo” um dos filmes mais almodovariano dos últimos tempos, aceitando que o cineasta vai amadurecendo nalguns aspectos, criando novas tensões, desenvolvendo no entanto sempre as mesmas obsessões e fantasmas, os seus temas eternos e depurando estilo e narrativa.
O “thriller” não é novidade em Almodôvar. Já o havia tratado abertamente em “Em Carne Viva”, adaptação de um romance de Ruth Rendel, e já o havia abordado por diversas vezes em sequências de muitas outras obras suas, onde o tom de “film noir” está presente. É obvio que Almodôvar é um entusiasta do “policial”, sobretudo do “film noir”, quando este lhe permite analisar o lado mais obscuro da condição humana.
Curiosamente, “La Piel que Habito” parte de um romance de Thierry Jonquet, escritor francês de policiais, muito elogiado em França, pouco conhecido em Portugal, oriundo de uma família de comunistas, filho de um mecânico parisiense, desde muito novo que se comprometeu com as lutas operárias sob o pseudónimo de um caricaturista do século XIX, Daumier. Tornou-se depois membro da “Troskyite Lutte Ouvrière”. Estudou Filosofia, que abandonou, e interesou-se por Ergoterapia (terapia baseada na saúde e no bem estar psico-fisico, conseguidos através do trabalho), depois de ter sofrido um acidente de automóvel. Trabalha em serviços de geriatria, na reeducação de bebés com doenças congénitas, finalmente num hospital psiquiátrico. Estes ambientes marcaram a sua obra. O primeiro romance, publicado em 1984, mas escrito antes, é “Le Bal des Débris”, mas “Mémoire en Cage”, “Mygale” e “La Bête et la Belle” marcam o seu reconhecimento como escritor, obcecado por temas como a violência, as questões sociais, um forte erotismo, tudo escrito numa linguagem realista e poética. Editado em 2006, “Ils sont votre épouvante et vous êtes leur crainte” aborda o antisemitismo. Thierry Jonquet escreveu ainda alguns argumentos para bandas desenhadas, como “Du papier faisons table rase”, com desenhos de Jean-Christophe Chauzy. Assinou ainda algumas obras com pseudónimos, Martin Éden e Ramon Mercader, o primeiro a recordar Jack London, o segundo a evocar o assassino de Trotsky. Morreu cedo (1954–2009), mas deixou vasta obra, cerca de vinte títulos, de que “Mygale”, na sua primitiva edição em francês, ou “Tarantula” ou “Serpent's Tail”, nas suas versões inglesas, datada de 1995, parece ser a sua obra de maior destaque. Foi ela que serviu de base a esta adaptação, muito livre, de Pedro Almodôvar (com a colaboração do seu irmão Agustín Almodôvar).

Se o gosto de Almodôvar pelo policial é conhecido, a sua predilecção por melodramas de faca e alguidar é manifesta, desde a sua mais tenra idade de cineasta. Ele não abdica de uma boa intriga, com famílias disfuncionais, múltiplas peripécias onde paixões funestas e amores à desfilada se entrecruzam em situações limite, bem à maneira do romance de cordel popular. Esta sua nova obra parece atingir um clímax nesse aspecto.
Depois, há o desejo (a sua produtora chama-se mesmo “El Deseo”), o sexo, o proibido, o tabu, a provocação, tudo rodando à volta do corpo e de um aspecto muito preciso da transformação do corpo (travestis e transformistas são habituais frequentadores da sua filmografia). A base sobre que assenta “A Pele em que Vivo” é precisamente o corpo e a sua transformação.
O protagonista desta história, na sua versão cinematográfica, o médico cirurgião Robert Ledgard (um Antonio Banderas comedido e rigoroso, como há muito se não via), assemelhando-se em muito a um Frankenstein dos tempos modernos, procura “criar a mulher” (já Terence Fisher o tentara, numa obra notável, mas recriando a situação com o tradicional Dr. Frankenstein). Mas a obsessão de Robert Ledgard não é pegar em diferentes partes de vários corpos e criar o modelo de mulher ideal. É agarrar num homem e transformá-lo em mulher, através de uma operação ginecológica, mas sobretudo, porque essa é a área das suas pesquisas, através de um nova pele, resistente à dor, ao calor, às picadas, às ameaças do exterior.
O que está na base desta obsessão? Gal, a mulher, teve um acidente de carro e ficou carbonizada, ele tentou salvá-la por todos os meios ao seu alcance, mas acabaria por falhar, pois um dia a mulher olha-se ao espelho e suicida-se, atirando-se de uma janela abaixo. Fica a dor da perca e o remorso do falhanço. E fica a filha, Norma (um referência operática, mais ou menos óbvia), que um dia é violada e fica para sempre traumatizada, acabando por seguir o caminho da mãe. Robert Ledgard sabe quem foi o violador, persegue-o, encurrala-o numa cave e exerce sobre este prisioneiro pessoal todas as experiências possíveis, até ele adquirir os contornos de Vera (a belíssima e talentosa Elena Anaya), que mais tarde se chamará a si própria Vera Cruz. Ela será Vera (de verdadeira) para Ledgard, e Cruz (de calvário) para Vicente (Jan Cornet).
Há uma outra história paralela a esta, que com ela se cruza por diversos meios. A governanta, Marília (Marisa Paredes, como sempre magnífica), e principal cúmplice de Ledgard, é o resguardo seguro do seu palacete e a guardiã das suas experiências, que acompanha através de um ecrã ligado à bela masmorra onde Vera se vai transformando. Mas Marília tem um filho, Zeca (uma personagem de carnaval brasileiro, interpretada por Roberto Álamo), que um dia se esconde sob as saias da mãe, que viola Vera e que Ledgard descobre. O que Ledgard nunca descobrirá é que Zeca é seu irmão, e Marília sua mãe.
Não interessa aprofundar mais a história rocambolesca, e pícara em muitos aspectos. Este enunciado dá bem a medida das obsessões de Almodôvar e da forma como as aborda neste filme. O corpo que se transforma, os sexos que se diluem um no outro, a violência exercida sobre a pele como elemento erótico por excelência e, mais do que isso, a transformação imposta e a culpa que nasce deste acto. E a revolta. Nada de mais almodovariano se poderia encontrar.
Que Pedro Almodôvar é menos barroco do que habitualmente na construção dos cenários e da narrativa, é certo, ainda que a personagem de Zeca e a “boutique” da mãe de Vicente escapem para o ambiente dos seus primeiros filmes. Mas esta deslizagem de Almodôvar para um cinema mais clássico era já notória nos últimos títulos da sua filmografia. A mestria da sua arte continua, porém, inatacável, a direcção de actores é primorosa, e o resultado final é uma obra inquietante, belíssima na sua estética depurada, onde o corpo da mulher (da mulher viva, mas também da mulher “representada” em várias obras de arte que se dispersam pelas paredes da casa de Robert Ledgard) adquire um posição de eixo central que irá comandar toda a respiração deste filme profundamente perturbador.  
Visto o filme, voltemos ao romance que não se pode considerar um policial tradicional, mas que se inscreve mais na tradição do “roman noir”, aqui com laivos de fantástico (a tal referência a Frankenstein não é descabida, ainda que ela se remeta mais ao filme que ao livro). Como é sabido, o “roman noir” e o “film noir” participam de um olhar sobre a realidade social e de uma visão crítica sobre essa realidade. Pode conter ou não a personagem detectivesca, mas o seu cenário natural é o crime que se joga ou no submundo alternativo ou na alta sociedade corrupta e viciada. Este o ambiente de “Tarântula” (editado em Portugal pela Editora Objectiva, na sua colecção “Suma de Letras”).
Curiosamente, no romance o médico cirurgião Richard Lafargue não trabalha obsessivamente com a pele, mas sim com cirurgia plástica, o que implica obviamente o transplante da pele, mas não da forma como aparece na obra de Almodôvar, e que acaba por dar o nome ao filme.
De resto, há inúmeras diferenças entre o romance e o filme, ainda que o esquema central se mantenha. Richard Lafargue perdeu a mulher num acidente aéreo, e descobriu a filha, Viviane, violada por um jovem que perseguiu, raptou, encarcerou e a quem fez uma vaginoplastia, transformando-o numa mulher, Ève, que mantinha prisioneira em sua casa. Esta história, porém, não é contada de uma forma cronológica, mas habilmente entrelaçada, com avanços e recuos, com uma outra, a de Alex Barny, um brutamontes que fizera um assalto a um banco, durante o qual matara um polícia, se refugiara depois com um bem recheado saco de notas numa casa dos arredores de Paris, e resolve chantagear Richard para que este lhe fizesse uma operação plástica para mudar o rosto, e assim se furtar à perseguição policial. No filme, esta personagem surge completamente alterada, sob o nome de Zeca e as vestes de um mascarado “Tigre”. Sabe-se mais tarde que Alex e Vincent (o mesmo que seria transformado em Ève), tinham ambos violado Viviane de forma bárbara, acabando por a encerrar num hospício sem esperança de recuperação possível. Tudo se passa como uma planificada e meticulosa vingança de Richard Lafargue. Ele é a “tarântula” que tece a sua teia em redor da vítima. Como se diz no próprio texto de Thierry Jonquet, “ele era igual à aranha, lenta e misteriosa, cruel e feroz, ávida e insaciável com as suas presas, e porque ele se escondia, tal como ela, algures naquela casa, onde te mantinha sequestrado há meses, numa teia de luxo, numa ratoeira dourada, da qual ele era carcereiro e tu recluso.”
Ambas as obras têm propósitos algo diferentes, ainda que evoluindo por uma trama que os pode aproximar. Mas a adaptação de Almodôvar desliza para outros campos, acentuando obviamente a visão, as obsessões e os fantasmas do cineasta espanhol. O livro é muito bem escrito, com uma perversa sensualidade que por vezes relembra o Buñuel de “Belle de Jour”, deixando adivinhar um excelente escritor de quem, lamentavelmente, se conhece em Portugal apenas esta tradução.  


A PELE ONDE EU VIVO
Título original: La Piel que Habito
Realização: Pedro Almodôvar (Espanha, 2011); Argumento: Pedro Almodóvar, Agustín Almodôvar, segundo romance de Thierry Jonquet ("Tarantula"); Produção: Agustín Almodóvar, Bárbara Peiró Aso, Esther García; Música: Alberto Iglesias; Fotografia (cor): José Luis Alcaine; Montagem: José Salcedo; Casting: Luis San Narciso; Design de produção: Antxón Gómez; Direcção artística: Carlos Bodelón; Guarda-roupa: Paco Delgado; Maquilhagem: Tamar Aviv, Manolo Carretero, David Martí, Montse Ribé; Direcção de produção: Sergio Díaz, Toni Novella; Assistentes de realização: Manuel Calvo, Juan Carlevaris, David Esquivel, Eva Sánchez; Departamento de arte: Pablo Buratti, Vicent Díaz, Alejandra Loiseau; Som: Iván Marín; Efeitos especiais: Reyes Abades, Daniel Reboul, Joaquín Vergara; Efeitos visuais: Helen Marti Donoghue; Companhias de produção: Canal+ España, El Deseo S.A., Instituto de Crédito Oficial (ICO), Televisión Española (TVE); Intérpretes: Antonio Banderas (Robert Ledgard), Elena Anaya (Vera Cruz), Marisa Paredes (Marília), Jan Cornet (Vicente), Roberto Álamo (Zeca), Eduard Fernández (Fulgencio), José Luis Gómez (Presidente do Instituto de Biotecnologia), Blanca Suárez (Norma Ledgard), Susi Sánchez (mãe de Vicente), Bárbara Lennie (Cristina), Fernando Cayo (Médico), Buika (Cantora), Guillermo Carbajo, Agustín Almodôvar, Violaine Estérez, Sheyla Fariña, Esther Garcia, Teresa Manresa, Ana Mena, Chema Ruiz, David Vila, Jordi Vilalta, etc. Duração: 117 minutos; Distribuição em Portugal: Pris Audiovisuais; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 17 de Novembro de 2011.

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