domingo, 16 de outubro de 2011

OS POLICIAIS NO CINEMA (3) HENNING MANKELL

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Henning Mankell e "Kurt Wallander"

Henning Mankell é um dos grandes escritores contemporâneos. Ponto. Não interessa se escreve policiais ou não, até porque é muito conhecido pelos seus policiais protagonizados pelo inspector Kurt Wallander, mas também escreve outro tipo de obras, desde as infantis a ensaios etnográficos, sociológicos, peças de teatro, contos e romances, etc.
Faleceu em Gotemburgo, no dia 5 de Outubro de 2015. Nascido a 3 de Fevereiro de 1948, em Estocolmo, na Suécia, passou a infância em Sveg (Härjedalen) e Borås (Västergötland), onde o pai, Ivar Mankell, foi juiz. “A mãe fez o que muitos homens fazem, foi embora”, explica ele. Lia muito sobre países longínquos, e sobre África, “o mais exótico local que podia imaginar, o fim do mundo, e sempre pensei lá ir um dia”. Efabular, criar mundos, viver outras vidas, era o seu sonho de criança e adolescente: “Na minha cabeça criei uma mãe para substituir aquela que se fora embora.” A imaginação fazia parte do manual de sobrevivência pessoal. Aos seis anos já sabia ler e escrever, ensinado pela avó. “A primeira coisa que escrevi foi um resumo de “Robinson Crusoe” e tenho muita pena de ter perdido essa página. Foi aí que descobri que queria ser escritor”. Os livros que tem dedicado à juventude reflectem esse tempo e essas memórias em Sveg.
Já em Borás, abandonou a escola secundária e partiu, aos 16 anos, para Paris. De regresso, trabalhou como pescador e marinheiro, gostava da vida a bordo e dos navios. Escreveu a sua primeira peça de teatro, “The Amusement Park”, sobre os interesses suecos na América Latina colonial. Em 1973, assina a primeira novela sobre o movimento operário, “The Stone Blaster”. No mesmo ano, viaja até Guiné-Bissau, concretizando o seu sonho africano. Casou com Eva Bergman, irmã de Ingmar Bergman (sobre quem prepara actualmente uma série de televisão), e passa o seu tempo, desde 1986, entre a Suécia e Moçambique, ou como ele diz, “com um pé na neve e outro na areia”. Em Maputo, criou uma companhia teatral, o "Teatro Avenida", que dirige e onde encena trabalhos seus e outros, de colaboração com Manuela Soeiro.
Em 1979, Henning Mankell publicou “The Prison Colony that Disappeared”, o seu primeiro romance da editora Ordfront, dirigida pelo seu amigo Dan Israel. Vinte anos depois, em 2001, os dois criaram uma nova editora, a Leopard Publishing House. Entretanto, era já um conceituado e prolífero escritor de teatro e um encenador reconhecido. Em 1984, passou a dirigir o Kronobergsteatern, em Växjö, onde procurou novas formas de chegar ao público e de encenar, sobretudo autores suecos.
1990 marca o regresso de Henning Mankell à literatura com dois livros, “The Eye of the Leopard”, um romance sobre a selva na Zâmbia, e “A Bridge to the Stars”, para crianças. No ano seguinte, iniciaria a série dedicada ao detective Kurt Wallander, com “Faceless Killers”. 

“Estive algum tempo fora da Suécia e quando regressei percebi que o racismo se tinha tornado um problema, e decidi escrever sobre ele. Para mim, o racismo é um crime e pensei: Ok, vou escrever um policial. Fui à lista telefónica e escolhi um nome para o detective. Foi a 20 de Maio de 1989 que nasceu Kurt Wallander.”
Daí em diante, surgiram dez títulos com Wallander como principal investigador: “Mördare utan ansikte” (Assassino Sem Rosto, 1991), “Hundarna i Riga” (Os Cães de Riga, 1992), “Den vita lejoninnan” (A Leoa Branca, 1993), “Mannen som log” (O Homem que Sorria, 1994), “Villospår” (A Falsa Pista, 1995), “Den femte kvinnan” (A Quinta Mulher, 1996), “Steget efter” (Um Passo Atrás, 1997), “Brandvägg” (A Muralha Invisível, 1998), todos já editados em Portugal pela Presença, e “Den orolige mannen” (The Troubled Man, 2009), de que se aguarda para breve a edição nacional, e que se anuncia como o último (definitivamente o último) desta série. Além destes romances, Wallander é ainda protagonista de um conjunto de contos, “Pyramiden” (The Pyramid, 1999), inédito em Portugal, onde todavia se publicou um volume sem Wallender, “Kinesen” (O Homem de Pequim, 2008). Há ainda um outro romance com uma Wallander como protagonista, “Innan frosten” (Before the Frost, 2002), onde a filha, Linda Wallander, desempenha importante papel.
Qual a importância da obra policial de Henning Mankell? Primeiramente há que referir a sua qualidade literária. A forma como Mankell impõe personagens, cria ambientes, sustenta situações, define um suspense plausível, tudo isso numa linguagem clara, fluente, rica de alusões, de descrições sugestivas de locais exóticos ou de ambientes depressivos, é magnífica. Depois temos os temas que aborda, que vão da corrupção ao racismo, do fanatismo religioso à situação da mulher, das minorias étnicas e da condição dos refugiados até aos negócios sujos de armamento ou prostituição, da situação de crise na sociedade sueca à situação de crise em tantas outras sociedades, das antigas repúblicas do leste europeu aos países africanos, da China à Europa ou aos EUA. Mankell aborda os temas com perspicácia, argúcia, inteligência, bem documentado sobre o que fala, e sem papas na língua no que diz.
Finalmente há que referir as personagens escolhidas e a densidade humana que Mankell lhes empresta, tanto os que passam de volume para volume, como os que nascem e morrem, alguns literalmente, em cada obra. Neste aspecto, o inspector Kurt Wallender é um sujeito que vem directamente na linha de um Sherlock Holmes e de um Maigret. Na verdade, antes de inspector perspicaz, Wallender é um homem que aprendemos a seguir, e com ele olhar a humanidade. Vive em Mariagatan, na pequena cidade costeira de Ystad, perto de Malmo, que hoje em dia recebe visitas regulares de turistas em busca dos traços da figura de ficção, tal como acontece em Backer Street, em Londres, no caso da criação de Conan Doyle. Há quem procure as suas bebidas preferidas, quem toque no número da porta e olhe para as janelas do apartamento à procura de ver o detective assomar à vidraça. Wallander vai assumindo a idade de Mankell à medida que as aventuras vão evoluindo, deve ter iniciado a sua actividade pública pelos cinquenta, hoje terá sessenta e alguns, gosta de comer e beber, já foi apanhado pelos colegas a conduzir com álcool a mais no sangue, descobre com surpresa que é diabético, bebe muita água, tem sempre a boca seca, cansa-se imenso, anda invariavelmente à procura de um WC para urinar, é divorciado, tem uma filha já adulta, Linda, que já tentou suicidar-se, com quem não se relaciona muito bem, e tem um pai pintor, com Alzheimer, irascível e desmemoriado, que pinta sempre a mesma paisagem que vende à dúzia, com e sem galo.
Tem amigos na esquadra, quem o admire e quem o olhe com desconfiança, é justo e leal, a sua vida emocional é instável, uma vez apaixona-se por uma bibliotecária de Riga, mas o caso não dura muito. É um apreciador de passeios pela natureza e de estar sentado à beira-mar, gosta de ópera e vai descobrindo dia a dia que o mundo está cada vez pior na perversidade da sua maldade. Antigamente estes crimes de uma violência extrema não aconteciam em Ystad, afirma amiúde. Durante uma investigação mata um homem e esse acontecimento passa a pesar-lhe na consciência. No romance seguinte, vamos encontrá-lo isolado, deprimido, a carpir mágoas durante uma baixa que pensa ir conduzir directamente à reforma. Mas a morte estranha de alguém fá-lo regressar às investigações. 


Wallander, através de Mankell, lê-se de um fôlego. É êxito em todo o mundo, mas Portugal parece não conhecer muito bem este comissário que se entranha como um amigo no nosso convívio. Mankell já tentou abandoná-lo várias vezes, mas tem voltado sempre à sua criação. Até que em 2009, o abandonou para sempre. Confessa aos seus fiéis que “Wallander não morreu, mas não poderá regressar mais”.
A relação de Mankell com Wallader é particularmente interessante de analisar. O comissário é nitidamente um “alter-ego” do escritor, que transpôs para a personagem muito de si próprio. Até ao dia em que se tornou impossível coabitarem. Aí, Mankel tentou abandonar a personagem. Mas esta impôs-se-lhe com a força de uma criação indestrutível. Mankell coloca-a fora de cena com Alzheimer, mas não a expulsa completamente da sua vida. Linda Wallender aí está para continuar o ADN da família.
Desde meados dos anos 90 que Mankell e o seu detective Wallander têm atraído o interesse do cinema e da televisão. Infelizmente, ao que cremos, tudo permanece inédito em Portugal. A primeira série que se conhece foi rodada para a televisão sueca, entre 1994 e 2007, interpretada por Rolf Lassgård na figura de Wallander. Ainda na Suécia, entre 2005 e 2006, treze novas histórias foram adaptadas, desta vez ao cinema, quase todas originalmente escritas por Mankell para o efeito. Wallander aqui é personificado por Krister Henriksson. Nos anos seguintes, treze novos episódios foram produzidos para televisão e posterior lançamento em DVD. 
Entretanto, a partir de 2008, a BBC inglesa tem apresentado a produção da Zodiak Entertainment, "Wallander", uma mini série, em três temporadas, com três episódios cada uma, interpretada por Kenneth Branagh, no protagonista, e ainda Sarah Smart (Anne-Britt Hoglund) Sadie Shimmin (Lisa Holgersson), Tom Hiddleston (Magnus Martinsson), Richard McCabe (Nyberg), Jeany Spark (Linda Wallander) e David Warner (Povel Wallander). A realização esteve repartida por diversos directores, como Philip Martin ou Niall MacCormick. Totalmente rodada em Ystad e na paisagem da Scania, na Suécia, a série tem sido largamente premiada (nos Broadcasting Press Guild Award ou nos British Academy Television Awards) e foi nomeada para os Golden Globe e os Emmy, Kenneth Branagh foi considerado o melhor actor de séries televisivas em 2010, pelos BAFTAS. Na primeira temporada, podem ver-se “Sidetracked”, “One step behind” e “Firewall”. Na segunda, “Faceless Killers”, “The Man Who Smiled” e “The Fifth Woman”. 


Além destes trabalhos, Mankell escreveu, de colaboração com Jan Guillou, uma outra mini série de investigação criminal, “Talismanen”, onde Kurt Wallander aparece ocasionalmente, sendo interpretado por Lennart Jähkel.
Nenhuma destas séries é do conhecimento do público português. Pela minha parte, conheço até agora apenas a versão da BBC, com um excelente Kenneth Branagh, que, quer quanto a figura como quanto a talento, impõe um muito interessante e plausível comissário Wallender. Os restantes actores são bons e adaptam-se bem às figuras ficcionadas, a rodagem na Suécia confere cor local, os valores de produção estão à altura do prestígio da BBC. Apenas se sente a falta de “qualquer coisa” que não consegue passar do romance para o ecrã. A fotografia talvez seja demasiado brilhante e luminosa para o ambiente dramático e, por vezes, soturno da perversidade das histórias que se contam e das personagens que as habitam. Mas, globalmente, esta série e a sueca, interpretada por Krister Henriksson (que parece ser a preferida de Mankell), bem poderiam merecer a atenção dos canais portugueses.


A série sueca, com Rolf Lassgård, dirigida por Per Berglund, Leif Magnusson, Birger Larsen, Leif Lindblom, Lisa Siwe e Daniel Lind Lagerhof (1994-2007) agrupa “The Dogs of Riga”, “The White Lioness”, “Sidetracked”, “The Fifth Woman”, “The Man Who Smiled”, “One Step Behind”, “Firewall” e “The Pyramid”. ,
A série protagonizada por Krister Henriksson conta igualmente com vários realizadores (Kjell-Åke Andersson, Jörn Faurschou, Stephan Apelgren, Peter Flinth, Jonas Grimås, Anders Engström, entre outros). Os diferentes filmes são: “Before the Frost”, “The Village Idiot”, “The Brothers”, “The Overdose”, “The African Mastermind”, “The Tricksters”, “The Photographer”, “The Container”, “The Forger”, “The Secret”, “The Revenge”, “The Guilty”, “The Courier”, “The Thief”, “The Cellist”, “The Priest”, “The Infiltration”, “The Sniper”, “The Angel of Death”, “The Phantom”, “The Heritage”, “The Dun” e “The Witness”.
Refira-se que “Before the Frost”, com que abre esta série, é, como já vimos, um policial protagonizado por Linda Wallander, a filha do inspector, que de início não aceita a profissão do pai, mas progressivamente dele se aproxima até assumir o mesmo trabalho. Mankell pensou três romances com esta protagonista, que no cinema recebeu o rosto de Johanna Sällström (actriz que, entretanto, se suicidou).